Aconteceu naquele mesmo dia. Foi na frente da sua casa, tão logo desceram do veículo, que Lana sentiu pela última vez aquele abraço tão aconchegante, aquela pele tão macia, aquele cheiro… Quando se desfez dos braços de Lea, olhou uma última vez para aquele rosto tão vívido, aquele sorriso tão irresistível. Jamais esquecerá daquela visão: ela, tão alegre, com aquele casaco branco felpudo, o cachecol e aquele gorrinho preto na cabeça. Haviam acabado de retornar de sua viagem ao outro lado do mundo, onde fazia frio. Aqui, porém, fazia calor. Era verão no clima e no interior de seus corações. Como era bom ser feliz!
– Foi ótimo passar esses dias com você! – Lea lhe sussurrou, enquanto mexia carinhosamente nos seus cabelos – Lembre-se, sempre vou te amar…
Disse aquilo esperando que Lana falasse o mesmo. Ainda que as duas tivessem certeza de tudo que sentiam uma pela outra, era bom ouvir aquilo. Afinal, eram uma para a outra tudo que tinham e que poderiam ter no mundo. Seu afeto era único, como jamais existiria de novo. Jamais… Mesmo assim, por culpa da timidez, sempre a maldita timidez, tudo que Lana fez foi virar-se e seguir em direção à sua porta, acenando displicentemente a Lea como se aquele fosse um momento qualquer:
– Tchau – foi tudo que ela disse naquele adeus definitivo, antes da porta se fechar, separando-a do seu amor, o único que poderia ter, para todo o sempre! Como ela poderia saber?! Mesmo assim, não podia suportar tamanha dor.
– Não é justo. Por que tudo tinha de terminar assim desse jeito – Lana sussurrava em desconsolado desespero ao despenhadeiro à sua frente – Por quê…?



Com passos determinados, Lana caminhava pelas ruas da cidade naquela ensolarada tarde de verão movida quase de forma inconsciente por um impulso invencível, incapaz de ser impedido. Sua tenra e imaculada face feminina, com o rosto comprido, cabelos castanhos, pele clara e o olhar convicto de mulher madura e resolvida, se encontrava em completa antítese com suas feições delicadas de uma quase adolescente, com aqueles seus lábios capazes de irradiar amor e luxúria na mesma intensidade, produzindo no seu jeito e na sua personalidade uma síntese perfeita de mulher e menina. Estava inteira de branco, de saia e camisa, uma roupa simples como sua beleza. Tão única era a maneira de ser daquela jovem que ela seria capaz de chamar a atenção de qualquer homem, se houvessem homens na rua. Havia, porém, somente ela a caminhar por aquela via, arborizada de uma maneira tão encantadora que seria capaz de incutir a mais pura alegria em qualquer alma, menos a dela. Aos seus olhos, era como se tudo fosse uma nebulosa névoa de nostalgia que inundava cada pedacinho de seu ser. Era como se sentisse saudades de uma vida que nunca vivera, saudades de um sentido, de um algo capaz de aplacar sua angústia, aquela sua estranha dor interior com a qual aprendera a conviver, até o ponto de tornar-se capaz de saboreá-la, de extrair satisfação e até mesmo autorrealização de seu próprio tormento interior.
Seguiu caminhando, com a pressa de quem sentia um Desejo que não podia ser explicado nem ignorado, e tampouco adiado. Então chegou próximo a um portão gradeado imenso e ricamente ornamentado, que completando a sublime paisagem natural da vizinhança, tinha seu muro ao redor coberto de trepadeiras de um verde purificante, ainda que incapaz de desanuviar a desalentadora expressão da jovem. Indo em direção ao portão sem deter seus passos nem por um momento ela pareceu sequer prestar atenção ao suave abrir daquelas imponentes portas, como que se curvando submissas ao seu Desejo. Caminhou mais um pouco através de uma alameda repleta de uma flora ainda mais aconchegante do que a da rua, mas igualmente incapaz de tocá-la. No final do caminho havia uma casa que parecia uma mansão, cujas portas novamente se abriram aos seus indiferentes passos, revelando diante dos olhos negros da moça a alegre e extrovertida figura de um jovem rapaz.
– Oi, Lana – sorriu para ela – Veio visitar Nel outra vez?
– Oi, Zem. É claro que sim – ela devolveu monotônica, sem coragem de encará-lo face a face.
– Puxa, que decepção – ele forçou uma espalhafatosa cara de choro – Achei que vinha aqui quase todos os dias só pra me ver. Agendou horário?
A expressão de Lana deformou-se num olhar irritado de garota mimada contrariada, e como num desafio, ela encarou Zem no fundo dos olhos:
– Não sei por que deveria agendar horário para vir aqui. Não somos todos livres?!
– Claro que somos – Zem abriu um sorriso debochado – Mas Nel é um só, e há outras pessoas que também o usam. E como você bem sabe, nossa liberdade deve ser plena até o ponto em que começa a liberdade dos outros.
Lana respirou fundo e baixou a cabeça, seus olhos frustrados tornando a fugir do contato com os de Zem:
– Calma, não precisa ficar contrariada. Felizmente, você chegou num horário em que ninguém agendou. Pelas próximas duas horas, Nel será todo seu.
Lana respirou fundo novamente, dessa vez de alívio e retomou seus passos mecanicamente.
– O que vai ser dessa vez? – Zem perguntou junto à porta enquanto Lana seguia se afastando – Qual será o novo grande sucesso que você fará sair dos estúdios de Adirondack?
– Você verá – ela continuou sem olhar para trás. Me espere, quero que me ajude a terminar de editar ainda hoje.
– De novo? – Zem exclamou quando ela já estava longe – Esses artistas… Quando lhes dá na telha, produzem mais do que qualquer trabalhador!
Seguiu através daqueles largos corredores sem janelas, de paredes pesadas como as de um antigo castelo, com passinhos que lhe faziam parecer uma boneca fora de rumo naquele ambiente tão austero. A luminosidade foi ficando cada vez menor à medida que avançava, e então ela se viu numa sala completamente escura, de dimensões indeterminadas e que parecia não ter começo nem fim.
– Olá, Nel – a jovem dirigiu-se ao nada com uma voz doce. Como resposta, o vazio foi preenchido pela luminosidade intensa de um céu azul e caloroso, e o ar foi tomado pelo aconchegante som de ondas rebentando na belíssima praia recém-surgida ao seu redor, enquanto gaivotas cantavam alegremente sob o sol.
– Isso não – a garota protestou – Não estou com humor pra essas coisas. Quero escuro e silêncio. Um pálido luar, vento assobiando levemente…
Imediatamente, a praia desapareceu e uma lua cheia surgiu sozinha num céu desprovido de estrelas para iluminar a solitária figura da moça. Nada havia ao seu redor, e um vento assobiava como se viesse do infinito, carregando toda a amargura de um passado distante para perder-se no invisível horizonte, trazendo frio ao frágil corpo de Lana:
– Isso… – ela sussurrou, como que lançada em meio a um vazio inconsolável – Faça-me sentir como estou, como quero continuar…!
Seus olhos ficaram turvos novamente, conferindo uma aparência onírica e transcedental à lua e ao chão daquele desolado e interminável plano onde repousavam seus delicados pés. Sentia-se irremediavelmente melancólica, ainda que, no fundo, saboreasse uma imensa satisfação interior.
– Vista-me de uma maneira luxuosa – ela suplicou a Nel – arrume meus cabelos, ajeite meu rosto, mas não me ponha saltos altos. Quero me sentir viva!
E o verbo se fez matéria, surgindo sobre ela um lindo vestido vermelho que parecia tão real que ela podia senti-lo no corpo. Um penteado incrível tomara seus cabelos castanhos e sua face pálida estava esplendidamente maquiada, com um batom vermelho a coroar sua deslumbrante aparência.
– Agora, leia meus sentimentos – baixou a cabeça e o tom de voz – E faça um som condizente com meu estado de espírito. Depois, pode começar a gravar.
Não tardou para que surgisse de toda parte um som artificial fatídico e melancólico, capaz de sintetizar em meio a suas notas toda a futilidade de uma existência frívola, carente de propósito. Era a melodia de uma alma refém de uma saudade sem sentido, angustiada por um sentimento de perda infinita daquilo que nunca se teve e jamais poderá ser recuperado.
– Nossos pais dizem que vivemos em um paraíso – ela falou com uma voz firme, corajosamente incapaz de se deixar contaminar pela esmagadora tristeza que a rodeava – Podemos fazer o que quisermos, ir onde quisermos. Aprendemos somente o que nos interessa, trabalhamos somente se nos apetece, morremos somente quando nos cansamos da vida. Podemos ter todo o prazer que desejarmos, qualquer ocupação que necessitarmos, todas as coisas que precisarmos, toda a liberdade que ambicionarmos. Em resumo, vivemos em um mundo perfeito, é o que nos dizem. Então por que tenho essa horrível sensação de que me falta algo? Por quê…? Sei que vocês me entendem, pois há milhões na Rede que pensam o que penso, que sentem o que sinto, que sofrem o que sofro. Bem, meus queridos e minhas queridas, esta música é para vocês…
Três notas tristes de algum instrumento ressoaram todo seu desalento no vazio irremediável, servindo como sinal de largada. Num giro de seu ávido corpo Lana se pôs a dançar em meio às trevas, tendo como único par a melancólica melodia que nascia dentro de si mesma, do sentimento de solidão de seu sensível ser. Braços, pernas, cabelos e vestido balançavam ao sabor daquela mistura musical envolvente: uma sequência suplicante de notas de antigos instrumentos de corda, violinos, violões, velhos vibrantes a reverberar, numa mistura melosa e preguiçosa, vislumbres de uma vida vã e vazia… Toques de um som eletrônico, artificial, ainda que fantástico, com sua arrebatadora capacidade de chamar e carregar almas rumo a um mundo de saudosas felicidades jamais vivenciadas e eternamente perdidas… Uma batida distante, esporádica, que nos refrões acelerava de forma empolgante, envolvente e excitante, proporcionando a mais perfeita e absurda combinação de depressão e animação, tristeza e beleza, um inferno paradisíaco. Tudo junto em uma só canção, tudo vindo de dentro dela, como só ela conseguia fazer…
A música prosseguia. Pés dançavam, braços se agitavam. Ambientada na sua alma, emergindo da essência de seu espírito, a música seguia sob o balançar sensual de seu corpo, acompanhada pelo cintilar impessoal e impassível de cortinas de luzes eletrônicas, com seu vestido vermelho e seus esvoaçantes cabelos lhe fazendo parecer a última gota de humanidade num Universo digitalizado, inerte e insensível, e acima de tudo, totalmente solitário. Então, a reverberação das cordas e o embalo da batida se interromperam de súbito, junto com sua dança.
Tendo extravasado tudo que sentia, aliviada por satisfazer seu Desejo, ergueu a cabeça para, novamente de vestido branco, retirar-se daquela sala escura, vazia e silenciosa. Passou apressadamente pelos corredores do casarão, para seu alívio, sem cruzar com ninguém. Deteve-se do lado de fora da porta, como que buscando consolo nos confortáveis e calorosos raios de sol. Mas a alegria trazia pela luz era incapaz de penetrar além da delicada pele de seu ser, e Lana seguiu soturna e sinistra. Ela deixara a escuridão trancafiada no estúdio, junto com a música que acabara de gravar, mas era como se a escuridão não a tivesse deixado. Respirou fundo, e sabendo que ainda havia muito trabalho a fazer, virou as costas ao sol e retornou para o interior da casa.



Mais tarde, naquela noite, Lana estava em seu lar sentada sobre a cama e imersa no silêncio, concentrada em aparar suas unhas quando o monitor instalado na parede à sua frente começou a bipar incessantemente. Sem erguer a vista, a jovem ordenou:
– Atenda, Misha.
O computador doméstico obedeceu o comando, e a seguir a imagem de uma mulher de meia idade apareceu na tela.
– Oi, mãe – Lana a saudou ainda com a vista baixa.
– Como sabia que era eu, filha?
– Simples. Você é a única pessoa que me liga.
A mãe suspirou.
– Filha… Você sabe o quanto isso tudo me preocupa. Você não está se recuperando. Quando foi a última vez que viu alguém?
– Hoje vi Zem.
– De novo o rapaz do estúdio! Ele parece ser a única pessoa que você encontra pessoalmente. Se ao menos fosse seu namorado, mas nem isso! Por que não procura alguma outra ocupação além de suas músicas?
– Não preciso. Estou bem assim.
– É óbvio que não está! Você precisa ver pessoas, relacionar-se com elas. Como pode uma garota como você nunca ter tido sequer um namorado na vida? Você não está tomando os remédios, está?
– Claro que estou, mãe.
– Então porque continua com sua misantropia?
– Não é nada disso – Lana continuava preferindo encarar as próprias unhas ao invés do rosto da mãe que, por fim, se enfureceu.
– Filha, olhe nos meus olhos!
Lana suspirou, e com um esforço enorme, ergueu a vista na direção do monitor, ali onde estava aquele incômodo par de olhos, sempre tão incriminador, quase doloroso. Por que era sempre tão difícil lidar com as pessoas?
– Isso tudo que você faz – a mãe continuou lhe metralhando com aquela voz virulenta, com aquelas pavorosas palavras – esse seu jeito, seu comportamento, isso não é normal e você sabe disso (Lana suspirou novamente). Você precisa de ajuda, não pode continuar assim, deixando sua família cada vez mais preocupada (Lana suspirou pela terceira vez).
– Não é nada disso, mãe – a garota retrucou num último grande esforço pra se defender, enquanto seus olhos iam novamente escorregando para longe do monitor – Só estou bastante ocupada, trabalhando muito com as músicas…
– Trabalho nunca foi desculpa, você para quando quiser. Todo mundo faz assim. A menos que agora esteja acrescentando o vício do trabalho à sua lista de doenças…
Num rápido movimento, Lana alcançou o controle remoto e encerrou a ligação. A casa ficou novamente em total silêncio, do jeito que ela gostava ou, pelo menos, como dizia a si mesma que gostava. A seguir ela se levantou e foi até a janela, que se abriu com um gesto de sua mão. Estava bem escuro lá fora, e um pouco abafado ali dentro, por isso aquela brisa noturna de verão foi um tanto bem–vinda. O sono era tanto que lhe doía nas órbitas dos olhos, mas, mesmo assim, Lana se recusava a deitar. Pois lá fora era noite. Uma noite completamente escura, sem monstros, deuses ou mistérios, apenas noite. Mesmo sem mística, havia porém algo ali um tanto irresistível, inspirador. Era a paz, o silêncio solitário que desacorrenta a alma das atribulações e mesquinharias do imediatismo cotidiano e lhe permite voar longe, até os mais distantes recantos da consciência, na eterna busca, poética mas também prática, daquilo que vai além dos dias de alienante ocupação e que dá de fato um sentido para toda a existência. O que mais poderia dar tal sentido, senão respirar aquela substância noturna para depois expirar todos os seus sentimentos através da arte? Até onde sabia, esta era a única coisa no mundo capaz de, na sua incompletude vã e atribulada, permitir-lhe se aproximar de algo parecido com o ato de viver.
Mas o sono era intenso demais, por isso ela encheu os pulmões de brisa noturna pela última vez e fez sinal para a janela se fechar. Virando as costas para a noite, dirigiu-se com passos sonâmbulos ao bidê em frente à cama. Abriu uma gaveta, depois outra e mais outra. Passou a revirar freneticamente as gavetas, bufando de raiva em busca de algo que não estava ali.
– Misha, seu idiota! – Lana gritou para as paredes – Deixou faltar meu creme para as mãos! Como posso dormir sem meu creme?! Você não pensa não, seu cretino?!!!
Olhou para o relógio. Faltavam cinco minutos para a meia-noite. Menos mal que o centro de distribuição ficava aberto vinte e quatro horas. Ainda melhor que, a essa hora, certamente não haveria ninguém por lá. Ela estava tão segura disso que nem se preocupou em trocar seu vestido azul de pijama. Quente e tarde como estava, não haveria por que se vestir de outra maneira, pensou ela. Calçou um par de sandálias e saiu de azul pela noite.
Os sinos da torre do relógio já tocavam anunciando a chegada da meia-noite, ecoando suas batidas pela deserta e silenciosa cidade quando Lana já caminhava pelas ruas. Seguiu por algum tempo até vislumbrar as vitrines brilhantes da distribuidora, praguejando ao notar lá dentro tudo que mais queria evitar. Uma pessoa. Uma só pessoa, porém o suficiente para lhe deixar perturbada. Entrou com passos cautelosos, evitando ao máximo qualquer ruído para não chamar a atenção de quem estava ali. Era só pegar o creme e cair fora sem ser notada, e assim estaria livre de ter de encarar outro rosto, com todas aquelas expressões que a contrariavam tão facilmente, livre de ter de trocar palavras, de ouvir coisas que não queria ouvir, enfim, de passar por incômodos desnecessários. Mas ao contornar o corredor dos cosméticos deu de cara com a pessoa! Era uma mulher, e também estava vestida de pijama! Os olhos dela se cruzaram com os seus, e após um momento de puro embaraço, a outra exclamou:
– Pelo jeito mais alguém teve a mesma ideia que eu – a estranha sorriu para Lana – não me diga que também veio pegar creme para as mãos…
– Eu… – Lana abriu a boca para responder, mas não conseguiu terminar. Caiu na gargalhada, sendo prontamente seguida pela mulher. Lana prestou atenção nos seus cabelos ruivos, nos primeiros traços de rugas que começavam a se insinuar na pele, ainda que timidamente, demonstrando ser ela muito mais velha. Mas também prestou atenção naqueles olhos azulados, naquele sorriso. Ela era linda demais, e tinha um jeito tão cativante que nem mesmo a timidez de Lana foi capaz de resistir.
– Nunca imaginei que fosse encontrar mais alguém por aqui a essa hora – Lana continuava rindo, rindo de nervosa – Ainda mais vestida de pijama!
– E que ainda por cima não pode dormir sem passar o creme nas mãos.
– …E que para piorar – Lana atalhou com palavras rápidas e afoitas – tem em casa um Misha que é burro feito uma anta, a ponto de deixar sua dona histérica.
A estranha caiu na gargalhada com Lana, que não conseguia mais se controlar, ficando vermelha de tanto rir.
– A propósito – a ruiva esfregou lágrimas de riso do rosto – muito bonita sua sandália.
Foi só então que Lana percebeu que as sandálias da outra eram de cor rosa, igual às suas. Agora Lana estava histérica de tanto rir, e só depois que o ar quase lhe faltou conteve as gargalhadas para paralisar-se diante daquele par de olhos, que brilhavam de tanta alegria. Havia algo nela que fazia com que sua simples presença deixasse Lana incrivelmente bem, como há muito não se sentia. Então a mulher pegou seu creme da prateleira e já foi virando-se para ir embora, acenando para Lana.
– Desculpe, foi muito divertido mas preciso trabalhar amanhã de manhã. Nos vemos por aí, tchau.
– Espere – Lana a chamou, num gesto quase involuntário – Eu… Sabe, não tenho muitas amigas. Essa vizinhança é tão quieta. Você não tem contato?
– É claro! Procure pelo meu nome na Rede, me chamo Lea.
– E eu sou a Lana – adiantou-se para apertar sua mão, e sentiu pela primeira vez o calor e a maciez de sua pele. As duas ficaram se observando atentamente por um momento, sem lembrar de largar as mãos uma da outra, até que Lea desvencilhou-se dos esguios dedos de Lana e virou-se para ir embora, despedindo-se com um largo sorriso e um delicado aceno das mãos.
Tudo ficou em silêncio de novo, com um ou outro leve ruído das prateleiras repondo ou removendo produtos aqui e ali. Estranhamente, agora o silêncio a incomodava como nunca. Naquele instante em que a outra esteve ali, algo aconteceu. Lana parecia ter subitamente se libertado de toda sua retração social de uma vez só, como numa avalanche. Era como se tivesse vagado anos a fio num deserto sufocante para, somente agora, diante da água, fosse descobrir que o tempo todo tivera sede e não sabia. E tentara matar essa sede de uma vez só, através de palavras atabalhoadas, gestos precipitados e um riso descontrolado. Estremeceu só de pensar o que a mulher achou dela, de toda sua forma patética de falar e agir. Sentiu vergonha de suas palavras, de seu riso interminável, da maneira que a chamou e que apertou sua mão. Lea, este era seu nome. Agora nem mesmo as prateleiras moviam os produtos, e tudo estava quieto e deserto. E pela primeira vez, sabe-se lá desde quando, uma quietude genuinamente incômoda. Afinal, sentira sede de quê? Confusa, Lana tratou de pegar seu creme e ir embora.



Beije-me com força antes de ir, pensou Lana enquanto se aproximava da borda do despenhadeiro com passos mecânicos, levada pela força de seu implacável sofrimento. Queria tanto poder ter se despedido dela com esse beijo, ao menos isso! Ainda não podia acreditar que tudo se acabara, não podia suportar a ideia de ter de viver o resto da sua vida sem amor, sem carinho…
– Só queria que você soubesse… – exclamou como num desabafo à escuridão da garganta lá embaixo, postada entre duas sebes, o vestido branco conferindo-lhe a comovente inocência de um anjo perdido – Que você era a melhor…



Sozinha em casa, Lana dedilhava os teclados de seu piano produzindo uma melodia doce e suave. Vez ou outra errava os movimentos de seus afobados dedos de aprendiz e parava, recomeçando depois que as luzes a piscar nas teclas lhe indicavam como eram os movimentos corretos. Estava assim há algum tempo quando o monitor ao seu lado começou a bipar. Já estava se resignando a atender mais um telefonema de sua mãe quando, para seu espanto, percebeu que se tratava de um número diferente. Era Lea, a mulher da distribuidora! Respirou fundo, e deu a ordem de atender:
– Oi – aquela mesma face sorridente do dia anterior a saudou cheia de alegria.
– Oi… – respondeu meio sem jeito, mirando firme nos olhos de Lea – Tudo… Tudo bem?
– Tudo ótimo, querida! Fico contente de voltar a falar contigo. Gostaria de me acompanhar num passeio?
– Hã… Sim, quero sim! Que tipo de passeio?
– Algo diferente. Me encontre na praça central no fim da tarde. Tenho impressão que você vai adorar.
O sol já havia se posto quando uma Lana toda vestida de branco já seguia seu caminho com passos leves pelas desertas e silenciosas ruas da praça central. Numa esquina havia um veículo vermelho que só podia ser o de Lea, embora fosse de um tipo estranho, como ela nunca vira. Aproximou-se, e sem notar qualquer sinal dela, decidiu voltar suas atenções ao estranho veículo. Era um modelo conversível, de curvas simples e graciosas, que embora fosse pequeno, era todo feito de um metal maciço que lhe conferia uma aparência pesada e antiquada. Seus assentos eram todos virados para frente, como se os seus ocupantes devessem todos prestar constante atenção à estrada. E diante do assento frontal esquerdo havia algo como um aro fixado ao painel, o qual ela não fazia a menor ideia para que servisse. Então ouviu uma tenra respiração logo atrás, e a seguir um par de mãos leves e macias fechou-se sobre seus olhos.
– Adivinhe quem é – perguntou aquela voz doce e divertida.
– Lea! Acertei? – respondeu toda animada, como quem acabara de solucionar um grande enigma.
– Espertinha! – Lea mostrou-se, rindo – Desisto, não consigo ganhar de você.
Estava coberta por um fino vestido vermelho de peça única, atado no ventre por um cinto e, no restante do corpo, solto e leve como a brisa. O vestido deixava seus ombros destapados, destacando seus cabelos ruivos curtos penteados de uma maneira tão antiquada quanto o carro, mas, mesmo assim, um tanto charmosa. Olhou sua nova amiga de cima a baixo, desde suas sapatilhas até seus lábios sorridentes cobertos de batom vermelho. Como ela era linda! Lana sentiu um calor no peito, uma sensação boa, quase eufórica, como jamais sentira. Lea respondeu a seu olhar maravilhado sorrindo ainda mais, e as duas ficaram se observando por um tempo até que Lea tornou a falar:
– Te apresento o meu carro. Notei a maneira curiosa que você o olhava, por isso deixe-me abrir a porta para você entrar logo.
– Nossa! A porta precisa ser aberta com as mãos? Que tipo de carro é este?
– O tipo que não se vê andar pelas ruas há séculos. Vê esse disco aqui onde me sento? Se chama volante. Serve para dirigir o carro.
– O quê?! Você é que tem de fazê-lo andar?!
– Sim, pisando nestes pedais aqui embaixo e movendo esta alavanca. Vou dar a partida e você vai ver como é.
Lea girou uma chave, fazendo nascer sob o capô logo à frente um barulho esquisito, algo como um som de estrangulamento mecanizado, e então o carro começou a roncar e vibrar. A seguir, contrariando todas as expectativas de Lana, o pequeno e pesado veículo cantou os pneus e pôs-se em movimento de uma maneira surpreendentemente ligeira e vigorosa.
– Como foi que você conseguiu algo assim?!
– Comprei… Com dinheiro.
– Você pagou por um carro?!
– Ora, querida – a voz de Lea adquiriu um tom doce e delicado – Podia ter pego qualquer carro novo de graça, mas afinal, que graça têm esses carros que se dirigem sozinhos?
– Mas não entendo. Por que alguém iria querer pagar por um carro que você mesma tem de dirigir?
– É divertido. Outro dia te ensino a andar com ele. Naquele tempo não se faziam muitos destes, por isso as pessoas não podiam trocar de carro o tempo todo que nem nós. Daí, estes carrinhos eram feitos para durar para toda a vida.
– Toda a vida! – espantou-se Lana – A vida toda com o mesmo carro?!
– Sim. Este daqui é a versão adaptada de um Trabant, que quer dizer “satélite”. Pois como a lua girando em torno da Terra, ele era feito pra nos acompanhar para sempre. Não é bom ter uma companhia assim, para toda a vida?
Lea frisou a última frase com um tom de voz tão afável que Lana não pôde deixar de sentir… Sentir o quê? Algo muito bom, uma sensação vivificante, como uma proposta impossível de resistir. Uma companhia para toda a vida… Sentiu no próprio peito o calor humano que a presença de Lea lhe transmitia com aqueles olhares de soslaio, olhares presos ao controle da estrada, mas, ainda assim, incapazes de deixar de lhe admirar por mais que alguns instantes.
Seguiram assim por um tempo, a rapidez e o ronco do motor ressoando uma emoção desconhecida no peito de Lana. Estavam agora circulando pela cidade velha, um bairro cuidadosamente restaurado para parecer e funcionar exatamente como era no passado distante, talvez o mesmo passado de onde viera o carro em que andavam. Ao seu lado, se sobrepondo àquele pôr do sol de cor cobreada, havia uma sequência de postes margeando a estrada, trazendo pendurados sobre si uma série de linhas intermináveis, que pareciam acompanhar a estrada dali até o infinito, além de sustentar um ou outro equipamento grande e metálico, diversas peças, ferragens e fios menores, que se ligavam às linhas seguindo alguma lógica um tanto confusa. Eram os últimos sobreviventes de uma tecnologia antiga e ultrapassada, Lana pensou, lembranças de um tempo triste e tétrico onde máquinas brutas, ineficazes e desprovidas de qualquer inteligência, faziam do mundo um lugar feio e rude, animalizando seus habitantes ao exigir deles uma sobrecarga de trabalho braçal e proporcionando mais poluição e exploração do que gratidão para a Humanidade. Pensou por um instante nas pessoas daquele e de outros passados, imaginando todas as desilusões e desapontamentos daqueles que viviam vidas tão curtas e sofridas, escravos de tantos superstições e limitações, presos à desesperada busca por ter cada vez mais e sempre temendo perder o pouco que tinham. Incontáveis gerações que, lutando para melhorar as condições de suas breves existências, errando e acertando, tateando no escuro da ignorância, conseguiram enfim construir um mundo como o atual. Era como se todas aquelas pessoas só tivessem nascido e morrido para que hoje Lana pudesse estar aqui, com tudo que precisava para uma vida feliz e humanizada, mas, ainda assim, sentindo falta de algo… Teriam, portanto, todas aquelas almas existido em vão? Indiferente, Lana não sentiu qualquer pena. Queria apenas aproveitar seu passeio.
Mas não tardou que os fios nos postes voltassem a atrair sua atenção. Estavam bem ali, sobre sua cabeça, chiando por conta de algum estranho fenômeno físico, como que chamando-a para algum tipo ardiloso de armadilha. Podia inclusive sentir a vibração no ar! Pensou na energia que circulava ali, se esta não seria capaz de manipular sua mente de alguma forma, e sentiu um arrepio. Seriam aqueles assustadores fios, com seus postes gigantes a lhe seguir e envolver, os responsáveis por estar se sentindo tão estranha? Ou seria… a presença de Lea? Olhou para ela, que lhe devolveu um encantador sorriso pelo canto do rosto. Perdida por tanto tempo em meio às trevas de sua misantropia, Lana quase se esqueceu de como era interagir com alguém. Quase esquecera das emoções que envolvem este tão básico processo de ação e reação, de agir sobre alguém, mesmo com um mero olhar, para depois contemplar a reação da outra pessoa, ainda que com um singelo sorriso. Por mais inteligentes que sejam, as máquinas modernas não fazem isso, não dessa maneira. Seria isto, a carência de companhia, tão subitamente saciada, que a fazia se sentir tão estranha? Lana não sabia dizer.
Não tardou e logo as duas percorriam um trecho sem postes, fios ou feiuras. Somente havia as curvas daquele caminho asfaltado junto a uma ribanceira, além do vento que trazia o perfume da vegetação ao redor e fazia os cabelos das amigas esvoaçarem, alegres como a liberdade. O ronco do motor, suas arrancadas e freadas, as curvas apressadas a arrancar gemidos das rodas, tudo isso sob o fresco entardecer de verão… Era uma sensação emocionante! Lana ria bem alto, com Lea a acompanhando nas gargalhadas entre movimentos bruscos do volante que as jogavam uma contra a outra no assento do ágil automóvel. Era tudo tão bom!
Após rodarem algum tempo pela estrada pararam em frente a um prédio grande e muito antigo, de uma arquitetura pomposa que lembrava um palácio, embora servisse a outro propósito que Lana desconhecia. Lá dentro havia um saguão de um luxo um tanto envelhecido, com escadarias cobertas por tapetes vermelhos e cartazes de cores desbotadas emoldurados nas paredes.
– E agora, o que é isso? – Lana questionou, cheia de curiosidade.
– Se chama cinema. É onde as pessoas se reuniam para assistir filmes nas primeiras eras da imagem em movimento.
– Como é que nunca vi esse lugar antes?!
Lea divertia-se com a incredulidade da amiga:
– Você não é de sair muito, não é mesmo?
– Claro que sou. Quer dizer… Não.
– Percebo. Mas nunca é tarde para se começar a viver. Vejamos o que temos em cartaz aqui hoje. “E o Vento Levou”, “Godzilla”, “A Noviça Rebelde” e “Drácula”. Quais deles vamos assistir?
– Sei lá, que tal esses dois últimos?
Logo, as duas sentavam-se em uma sala repleta de assentos, mas ocupada somente por elas. Tudo ficou escuro, e uma luz passando por sobre suas cabeças projetou-se na imensa tela branca à sua frente, onde para a alegria de Lana, curiosas imagens em preto e branco ganharam vida, sons e movimento. Mas logo aquela penumbra bruxuleante, aquela melodia sinistra, aquele clima, se tornaram angustiantes. Não conseguia parar de fitar a expressão maléfica e hipnotizante do tenebroso homem da capa que se aproximava ameaçador da donzela indefesa. Seus olhos sinistros e envolventes tinham a profundidade de um oceano, ao qual a moça parecia incapaz de resistir, como se estivesse enfeitiçada. O homem a agarrou pelo queixo, e escancarou seus pontiagudos dentes para morder o pescoço da boquiaberta garota! Aquilo era pavoroso demais! Lana não pôde se conter, lançando-se apavorada sobre a sua amiga, que a abraçou de volta. De súbito o medo de Lana passou, substituído por uma estranha satisfação alimentada pelo calor reconfortante daquele abraço macio, daquela pele cheirosa como um campo florido, daquelas mãos delicadas como seda. Percebeu na penumbra o brilho vívido daqueles olhos alegres, daqueles traços de seu rosto perfeito. Não conseguia parar de olhar para Lea, até que esta pousou ternamente a mão em seu cabelo, assustando Lana, que de um salto voltou para sua poltrona.
Depois de verem filmes até se cansar as duas saíram da sala de projeção aos risos, dançando naquele imenso e vazio saguão de entrada, divertindo-se ao tropeçar naqueles tapetões vermelhos, abraçando-se enquanto brincavam de interpretar os personagens dos filmes. Seguiram assim pelas ruas no esquisito e emocionante carro manual de Lea. Mas ao chegarem à frente da casa de Lana esta se calou ao notar os olhos de Lea firmarem-se nos seus. Era um olhar tão aconchegante, tão cheio de afeto! Assustada, Lana saltou do carro e com uma breve despedida entrou em casa. Aquele olhar a deixara realmente confusa, mais do que em qualquer outro momento do passeio. Mais do que isso, a deixara assustada. Mas diferente do vilão do filme, o susto que Lea lhe fez sentir era de um tipo totalmente novo, tão agradável e irresistível que a deixara desorientada. Nunca antes alguém lhe havia feito sentir todas essas coisas. Nunca havia sentido isso… Por uma mulher?! Lana desabou no sofá branco da sua espaçosa sala e levou a mão ao queixo caído. Impossível! Devia estar maluca, pensou ela, talvez um incomum efeito colateral dos remédios. Ou talvez seu isolamento excessivo lhe tivesse deixado assim, carente e abobada. Mas não conseguia tirar Lea da cabeça! Estava viciada na sensação maravilhosa que a presença dela lhe provocava. Mas, como? Correu para a outra extremidade da sala e apoiou-se no piano, sentindo-se cada vez mais desorientada. Voltou-se então para a tela ao lado e exclamou:
– Misha! Pesquise na Rede e me responda, é possível uma mulher gostar de outra?
Como resposta, luzes piscaram no monitor e uma voz neutra, pausada e ponderada, emergiu do nada: “Defina melhor esse gostar”. Lana ficou enrubescida, e sem olhar para a tela, tornou a falar com palavras tímidas e vacilantes:
– Gostar… Tipo, assim como homens gostam de mulheres.
A tela piscou mais uma vez, e o resultado de uma rápida pesquisa surgiu no monitor com ares de artigo acadêmico: “Homossexualismo, padrão comportamental que se define a grosso modo pela capacidade de um indivíduo em sentir atração sexual por indivíduos do mesmo gênero. Relativamente comum no passado remoto, se encontra extinto como comportamento humano há séculos.” E mais abaixo a sentença taxativa, com frieza e rigor científicos: “Resumo da resposta: impossível.”



– Queria me ver? – Lea a perguntou com cautela, encostada junto ao parapeito da ponte. Era a primeira vez que Lana a via sem um sorriso no rosto.
– Sim – Lana se aproximava vagarosamente da amiga – Queria pedir desculpas pelo jeito com que me despedi de você naquele dia. É que eu…
Calou-se, procurando escolher bem as palavras, mas antes que pudesse pensar no que dizer, Lea chegou bem perto, levando aquela sua mão delicada aos cabelos de Lana, que derreteu com o afago. Fazia tanto tempo que não era acariciada, e pela primeira vez por alguém que não fosse sua mãe. Aquilo era tão bom! Sem poder resistir, abraçou Lea. Ficaram assim, juntinhas, por um longo tempo, até que se afastaram por um momento apenas para se entreolharem. Lana sentiu o peito ferver de desejo! Aquele rosto, aquela boca… As pálpebras de Lana foram se fechando e sua boca se abrindo, e num movimento quase involuntário, seus lábios se juntaram aos de Lea. O gosto do beijo, o abraço, o calor, o cheiro! Lana jamais imaginou que pudesse ser tão bom! Mas então abateu-se sobre a moça uma sensação horrível de repulsa e arrependimento. Se afastou rapidamente dos lábios e do abraço, e envergonhada, se pôs a observar o rio lá embaixo:
– Eu… Não posso acreditar – balbuciou por fim – O que foi que fizemos?!
– Aquilo que duas pessoas fazem quando se gostam bastante – Lea suspirou, segurando a mão de Lana, que não encontrou forças para desvencilhar-se. As duas então se puseram a caminhar pela calçada da ponte, de mãos dadas, Lea observando Lana, e esta, tímida, reparando nos elegantes postes de iluminação com suas luminárias em forma de globo. Foi ela mesma quem quebrou o silêncio, balbuciando com voz vacilante:
– Como é possível? A Rede disse que isso não existe…
– Há muito tempo – Lea respirou fundo – os pais não tinham controle algum sobre como nasceriam seus filhos, como eles se pareceriam, nada disso. Tudo mudou com as técnicas de manipulação genética e hormonal. As doenças do corpo desapareceram, retardou-se enormemente o envelhecimento, e todos nos tornamos belos e saudáveis. Só que ninguém queria que seus filhos gostassem de alguém do mesmo sexo, e então pessoas como nós desapareceram do mundo. Mas algo saiu errado comigo – sorriu a Lana com uma certa malícia no olhar – E com você também…
– Somos doentes – Lana exclamou, agoniada.
– Minha pequena… Pense no que está sentindo. O sentimento que tem por mim é doentio?
Lana interrompeu seus passos e largou a mão de Lea. Observou mais uma vez o rio e a estrada vazia na ponte, procurando medir suas sensações pela solidão que as rodeava. Não tardou para que o silêncio lhe trouxesse uma resposta. A sensação não podia ser mais convicta, o que sentia por Lea não podia ser outra coisa senão o mais profundo amor.
– Não – respondeu por fim, tomando coragem para tornar a encarar o agora novamente meigo olhar de Lea – O que sinto por você não é doentio.
– Como vê, nosso amor é legítimo – sussurrou enquanto acariciava os cabelos de Lana – Nascemos uma para a outra, simples assim.
– Gosto tanto de você – Lana desabafou, sem resistir às carícias – Como jamais gostei de alguém.
– Eu também… Desde bem jovem já sabia o que queria, e apesar de também me dizerem que seria impossível, nunca desisti da procura. Revirei o mundo atrás desse amor por mais de um século…
– Século?!
– Sim, minha pequena, sou bem mais velha do que você poderia imaginar, ainda que não pareça. Mas o importante não é o tempo, e sim a persistência. E eu persisti, por isso agora, finalmente… Encontrei alguém como eu! Sempre soube que um dia conseguiria.
E voltaram a se beijar, dessa vez sem culpa ou medo, sem nada fora de lugar. A ponte, as ruas, o mundo, tudo agora pertencia a elas e a seu tão único e tão sagrado amor.



Depressão de verão, Lana refletia, enquanto abria os braços como que querendo abraçar as trevas da garganta lá embaixo. Este era o diagnóstico que Misha havia lhe dado sem ela pedir, o diagnóstico do agravamento de sua misantropia, depois que ela fizera sua última gravação do diário explicando seu sofrimento e sua inspiração daquela canção. Mas o que aquele computador idiota, Lana pensou, poderia conhecer da minha dor? E quem poderia? Ninguém, absolutamente ninguém!
Convicta, ela encarou o despenhadeiro a um passo de mergulhar nele, murmurando a si e ao mundo palavras que pareceram ressoar por todo o Universo, até se perderem nas brumas do esquecimento:
– Nada mais me assusta…!



– Estou tão feliz de estarmos viajando juntas! – Lea exclamou no assento da aeronave, virada de frente para sua namorada – Já estive em tantos lugares, e agora quero poder conhecer o restante do mundo com você.
Lana acariciou a palma da mão de Lea, e os dois olhares apaixonados se encontraram.
– E eu fico feliz que você tenha deixado seu trabalho para podermos passear juntas.
As paredes ao redor eram inteiramente transparentes, de onde as duas amantes podiam ver um tapete de nuvens sob aquela ensolarada e maravilhosa cortina azulada. Era tudo tão lindo, e Lana estava se sentindo tão bem!
– Estamos andando nas nuvens – exclamou, eufórica.
– Sim – Lea segurou sua mão – juntas, estamos sempre nas nuvens.
Ficaram mais um tempo se tocando enquanto singravam os céus, olhos nos olhos, sentindo uma a outra enquanto saciavam sua sede de ser mais do que uma só, encontrando a sensação do sentido que tanto procuraram para suas vidas. Então se separaram, e Lana firmou suas atenções no monitor da cabine:
– Aqui tem fotos dos lugares que visitaremos – disse, empolgada – Nossa, quantas coisas lindas podemos ver juntas!
– Que bom querida, temos todo o tempo do mundo para conhecer cada um desses lugares. No mínimo, mais uns cinquenta anos, quando vou começar a me tornar uma velhinha feia e enrugada e daí você vai poder me deixar…
– Amor… – Lana acariciou o rosto dela – Sabe que não vou te deixar nunca, mesmo que não fossemos as duas únicas de todo o mundo. Mas vamos ver o que temos de bom para visitar. Olha só que engraçado estes homens aqui…
Lana apontou para uma foto no visor do veículo, onde havia uma estátua de bronze com dois homens de barba bem comprida. O da esquerda estava sentado com as mãos sobre os joelhos e o da direita permanecia de pé, vestindo um pesado sobretudo e ereto numa postura solene.
– Aqui diz que eles são alemães. Será que os homens lá são todos barbudos assim?
– Não – Lea riu – É uma estátua bem antiga esta. Se não estou enganada, é de dois amigos filósofos que, dizem, séculos atrás teriam previsto como seria o mundo nos dias atuais…
– E eles acertaram?
– Sabe como é – Lea abriu um sorriso um tanto sapeca – as coisas nunca saem exatamente como se planeja.
Ficaram em silêncio, de mãos dadas observando as nuvens a passar lá fora, quando então Lea tornou a falar:
– Você acredita que houve um tempo em que as pessoas sonhavam em deixar o planeta e viajar pelas estrelas?
– É mesmo? – Lana se surpreendeu – Mas para quê, isso tudo já não é lindo o suficiente?
– Também não sei. Acho que começamos a fazer do mundo um lugar melhor quando percebemos que era impossível vencer as imensas distâncias cósmicas e que, portanto, esse planeta era o único que tínhamos… – fez uma pausa, rindo a seguir – Mas, provavelmente, é uma explicação muito simplista.
– Como você é inteligente – Lana admirou-se.
– Amor, quando você tiver a minha idade também saberá bastante. Dessas coisas antigas entendo bem porque uma das profissões mais divertidas que tive foi a de historiadora. Mas um dia decidi mudar de ares e passei a ser veterinária, depois economista, programadora, administradora, e – riu novamente – Esqueci o que mais! E hoje, sou enfermeira.
– E eu, apenas entendo de música… Sou uma simples artista que nunca teve emprego nem responsabilidades.
– Não se preocupe meu anjo, quando enjoar da música você poderá escolher um emprego, aquele que quiser. É muito fácil, os computadores fazem a maior parte do trabalho. Você só precisa aprender um pouco, e até nisso os computadores vão lhe ajudar. Mas deixe isso pra lá, já vamos aterrissar. Quero que você conheça esse lugar, tenho certeza que vai achar lindo.
Depois de pousarem, caminharam de mãos dadas por uma silenciosa e envelhecida estrada de ladrilhos rodeada por fileiras de ciprestes graciosamente alinhadas. Lana sentiu como se caminhasse rumo ao passado, o passado de sua própria vida que até então deixara de experimentar. Seguiram rente um largo e rude portão gradeado, ornamentado por delicados floreios de aço, atrás do qual diversas lápides e lajotas se espalhavam por um chão dominado pelo verde desbotado de musgo e ervas. Lana deteve-se para observar uma estranha escultura de mármore branco que pendia de uma das lápides, a de um homem de cabelo e queixo compridos, olhos tristes e resignados, preso a uma cruz. Ficou olhando para a imagem sem entendê-la, curiosa por descobrir qual seria o seu significado, quando sentiu a mão de Lea puxar-lhe delicadamente:
– Vamos, meu anjo, o que quero te mostrar está logo ali.
Seguiram seu caminho com passos inquietos em meio àquele labirinto de muros esverdeados e cercas vivas de teixos até só restar um imenso descampado à sua volta, onde um barranco gramado se encontrava enfeitado por fileiras de ciprestes que pareciam pilares verdes a sustentar as nuvens do céu. Chegando junto às árvores, Lana notou que o barranco era, na verdade, um amplo e assustador despenhadeiro, demarcando o início de uma gigantesca garganta, uma colossal abertura na terra, com diversas cachoeiras descendo por suas bordas verdejantes rumo a um fundo que mal podia ver de tão profundo.
– Como é lindo! – exclamou, observando com olhos curiosos a cada detalhe do fenomenal acidente geográfico.
– Sabia que ia gostar – Lea aproximou-se com suas carícias, e as duas ficaram observando abraçadas a incrível paisagem.
– Como está se sentindo? – a jovem Lana perguntou, cheia de curiosidade.
– Incrivelmente bem – Lea sussurrou – Me sinto parte desta natureza esplendorosa.
– Eu também. Mas é mais do que isso. – a garota suspirou fundo – Sinto como se meu peito fosse explodir de tanta alegria. Como pode ser tão bom?
– Isto, minha pequena – Lea olhou-a no fundo dos olhos – Se chama amor.
– Se chama felicidade – devolveu, sorrindo e suspirando, juntando suas faces, acariciando a pontinha do seu nariz ao dela. Se beijaram novamente em meio a um apertado e aconchegante abraço, e depois se largaram, satisfeitas em seu Desejo de Vida.
– Te amo pra sempre – Lea exclamou, emocionada.
– Eu também. Para todo o sempre.



A porta da casa se abriu àquelas passadas firmes, como que sabendo ser incapazes de resistir a toda aquela determinação, e uma mulher de meia idade introduziu-se no recinto. Chegou junto ao piano no centro da sala, e com um resmungo impaciente, exclamou:
– Misha, sou eu, a mãe de Lana. Ela não atende mais minhas ligações, até mesmo Zem não a tem visto. Onde anda minha filha?
– Está em viagem – disse aquela voz desinteressada – com uma amiga.
– Amiga? – a mãe estranhou – Mas Lana não tem amigos…
– Se conheceram há pouco – Misha retrucou.
– Quero ver todos os vídeos do diário dela.
– As leis dizem que nenhuma informação pode ser negada a ninguém – respondeu aquela voz sem entonação e desprovida de emoção – Mas devo lhe perguntar o porquê.
– Minha filha não é mais a mesma. Está diferente, e estou preocupada que seja por causa da sua misantropia. Quero saber o que ela anda fazendo.
Um holograma surgiu à sua frente, e nele sua filha se encontrava imersa na mais pura alegria, girando de mãos dadas com outra mulher, andando abraçadas na noite, brincando e rindo feito crianças. A desconhecida aparecia o tempo todo nos vídeos, dirigindo ela mesma o seu carro, acenando de sua bicicleta, sorrindo. Então aproximou-se da sua filha, acariciou-a de uma forma que mulheres jamais se acariciam, e beijou-a nos lábios. Um longo e apaixonado beijo, que deixou a mãe petrificada, pasma, incapaz de qualquer reação.



Já era tarde quando Lana chegou em casa. Sentia-se radiante, leve como uma pluma, com um pouco de culpa por não dizer a Lea o quanto a amava quando ela praticamente implorou que o fizesse, mas sentia-se bem demais. Só então percebeu que as luzes lá dentro estavam todas acesas, como se mais alguém estivesse lá dentro. Será possível, ela resmungou cerrando o olhar, que o inútil do Misha enlouqueceu de vez? Mas ao passar pela porta assustou-se ao ver sua mãe em pé junto ao piano, séria como a culpa, rígida como o castigo:
– Uma mulher – ela exclamou vindo em sua direção com passos largos, quase chorando de raiva – Você está se envolvendo com uma mulher?!
– Mãe, você não entende, eu e a Lea, a gente se ama…
– Desde quando uma mulher pode amar outra?! – ela gritou, as lágrimas lhe vertendo do rosto – Isso é doentio! É nojento! Você ultrapassou todos os limites do repulsivo! Pelo amor de meus ancestrais, vocês estão se beijando! Como consegue?! Jamais imaginei que pudesse existir algo tão… Tão asqueroso! Isso é safadeza pura!
– Mãe, eu…
– Você está doente, doente! – a mãe berrava descontrolada, fazendo Lana recuar horrorizada – Aquela mulher é uma louca, ela fez sua cabeça e agora você ficou que nem ela! Você precisa se tratar, não pode…
Sem aguentar aquilo tudo, Lana virou as costas e correu para o seu quarto, deixando sua histérica mãe a ecoar seus berros descontrolados na imensa sala:
– Isso, fuja dos problemas que você mesma criou! Até quando vai se esconder nesse mundinho das suas canções idiotas? Você mente a si mesma dizendo que ajuda as pessoas, mas só o que faz é transformar normais em gente igual a você! Doente, depravada, deprimida, e… Misantropa! Você sabe que tem problemas e se recusa a enfrentá-los. Sabe por que? Porque você é uma covarde, é isso que você é! Covarde!



– Querida – Lana sussurrou, abraçada a Lea enquanto as duas observavam o magnífico espetáculo das cachoeiras a correr pelas verdes beiradas da imponente garganta logo à sua frente – E se o nosso amor se acabasse, o que seria de nós?
– Não vai acabar nunca – ela respondeu de uma maneira afetuosa e serena – Porque eu te amo, e você também me ama.
– Mas e se mesmo assim acabasse – Lana insistiu, encarando seu amor nos olhos – O que você faria?
Lea respirou fundo, vagarosamente, e desviando seu olhar em direção ao horizonte, exclamou.
– Já vivi tempo demais, e sempre sozinha. Não tenho motivos para querer voltar a conviver com aquela dor. Acho que uma cachoeira como essa seria um bonito lugar para abrigar para sempre meus tristes restos mortais.
Assustada, Lana mirou novamente os olhos de sua companheira. Pareciam saturados de uma convicção e uma seriedade que jamais vira. Mas então esta de súbito desmanchou sua fria face num riso alegre mas embaraçado:
– Sabe, isso é engraçado. Por muito tempo fantasiei com um final assim. Principalmente quando era muito jovem, e me odiava profundamente por não ser capaz de me adaptar ao mundo. Pensava em mil maneiras de me punir, como cortar os pulsos ou algo assim. Mas não queria sentir dor, queria apenas me livrar dela. Então pensei num belo final, eu num esvoaçante vestido vermelho, de pés descalços, me largando de braços bem abertos de um lugar bem alto, meus cabelos se espalhando por toda parte, o chão lá embaixo me chamando rumo a meu próprio esquecimento. É o final que sempre quis para mim.
Lana fechou os olhos e visualizou toda a cena passando-se com ela mesma. Imaginou-se em um vestido bem branco, abrindo seus braços entre aquelas verdes e compridas sebes, a seguir deixando-se largar à misericórdia da mãe natureza. Sua amargura seria tragada pela escuridão da garganta, suas lágrimas de diluiriam para sempre na água corrente, e a natureza exuberante se alimentaria de seus doloridos restos, tornando-os novamente alegres, vivos nalguma vibrante e verdejante plantinha. Abriu os olhos novamente, e pensou que esta seria mesmo uma bonita maneira de terminar seus dias.
– Não seria uma má ideia – murmurou, seus olhos também a se perder no horizonte.
– Não me surpreende ouvi-la dizer isso. Afinal, somos iguais, não é mesmo? Verdadeiras almas gêmeas.
– Sim – Lana devolveu – Mas somente pensarei nessas coisas no dia em que não tiver mais nada a temer. Hoje, porém, permaneço com um medo, um único grande medo.
– O que seria? – Lea voltou-lhe as atenções, dando de encontro com o olhar meigo e carinhoso de sua namorada, que emocionada, respondeu:
– Perder você.
Suspiraram, e cheias de uma felicidade que parecia infinita, se abraçaram fortemente.



Estirada em sua cama, abraçando com força o travesseiro, Lana chorava descontroladamente. O sol lá fora já nascia espalhando seus revigorantes raios de luz por todo o recinto, mas dentro dela, novamente, tudo eram trevas. As palavras de sua mãe lhe doíam na alma. Sentia asco de si mesma, com raiva de si e do mundo, a vergonha a lhe lavar a face com lágrimas do mais puro esmorecimento. Então, o monitor na cabeceira da cama bipou, fazendo-a sentir-se rasgar por dentro. Era ela!
– Atenda, Misha – ela exclamou engolindo o choro – Mas sem imagem.
A tela parou de piscar e permaneceu apagada, enquanto do fundo daquele escuro brotava a voz doce e alegre de Lea:
– Oi, amor. Como foi sua noite?
– Não me chame assim – Lana soluçou – Não quero mais te ver, não quero mais falar com você! Nunca mais!
– Quê? Mas… – sua voz espantou-se – O que aconteceu, amor?
– Já disse pra não me chamar assim – gritou, cheia de ódio – Minha mãe esteve aqui ontem, ela sabe de tudo!
– Querida, eu…
– É vergonhoso o que fizemos, estou me sentindo um lixo! E é tudo culpa sua!
– Por favor – ela suplicou – me escute…
– Não temos mais nada a conversar! Ela tem razão, você é uma depravada que tentou me contaminar com sua doença! Mas não vai conseguir!
– Mas eu te amo…
– Chega de mentiras, sua degenerada! – gritou loucamente, visivelmente descontrolada – Não quero mais saber de você! Esquece que eu existo!
E acertou com força a tela do monitor, encerrando a ligação. Voltou a ficar sozinha, irremediavelmente sozinha. Como devia ser, pensou enquanto o som soluçante de seu choro era a única coisa a quebrar o silêncio do seu sempre solitário quarto. Chorou a ponto de lavar seu travesseiro de lágrimas, até faltar-lhe o ar. Então ficou imóvel, a esperança estirada, segurando seus soluços com dificuldade. A solidão, porém, agora lhe doía como nunca antes. Não podia resistir a seus sentimentos, amava de verdade a Lea, era impossível negar! Sentiu o arrependimento crescer, e uma vontade incontrolável de estar com ela, de abraçar-lhe, de suplicar por seu perdão. Tentou ainda conter-se por um tempo, agarrando-se ao travesseiro, lembrando-se da sensação ruim e de tudo que sua mãe dissera, mas não conseguiu suportar. Lançou-se ao monitor e discou para Lea. Mas ela não atendia, estava com seu comunicador desligado. Lembrou-se então da conversa que tiveram na garganta, e sentiu um presságio horrível lhe revirar por dentro. Pulou da cama, pegou seu multifuncional e saiu em disparada.
Correu como nunca, atravessando aquelas ruas desprovidas de trânsito ou pedestres enquanto tentava desesperadamente ligar para Lea, mas seu comunicador permanecia desligado. Praguejando, passou por uma via ensolarada e arborizada que podia parecer linda, mas não naquele dia. Correu ao largo daquele muro coberto de trepadeiras e passou velozmente por aquele imenso portão gradeado, que se abriu para a passagem da garota na medida da sua pressa. Logo ultrapassou as alamedas, e a seguir batia com força na imensa porta de madeira do casarão.
– Nossa, Lana – Zem assustou-se ao abri-la – O que houve?
– Preciso ver Nel – ela passou correndo – E não me diga que não posso.
– Claro… – ele resmungou, cruzando os braços – Ele é todo seu. De nada.
Ainda tentando em vão ligar para o comunicador de Lea, a aflita Lana atravessou apressadamente aqueles corredores sem janelas até deter-se naquela sala negra e vazia que lhe era tão familiar. Tão logo deteve seus passos, gritou com palavras que pareceram se perder em meio à escuridão:
– Nel! Me ajude! Acesse as câmeras de segurança da cidade! Procure por Lea!
Diante dela, materializou-se a imagem de uma inconsolável Lea, vestida de vermelho e dirigindo seu carro por ruas decrépitas e desertas, sua face deformada pela depressão. Aproximou a imagem até parecer estar sentada no banco do carona, e sem saber mais o que fazer, sussurrou:
– Lea, meu amor…
Como que por mágica, esta virou o rosto desfigurado pelo choro em direção a Lana, que sentiu um nó na garganta. Sabia que não tinha como ouvi-la ou percebê-la, mas era como se as duas estivessem de tal maneira ligadas uma a outra que quase podiam comunicar-se:
– Lea, por favor, me perdoe…
Sem poder ouvi-la, Lea estacionou seu carro junto à ponte. Sem perder tempo, subiu com cuidado o parapeito do passeio e deteve-se por um momento, observando a imensidão lá embaixo.
– Não… – Lana implorou, completamente impotente.
Sozinha na sua infinita aflição, tomada por tão destrutiva depressão, Lea pôs-se de pé defronte ao desesperador despenhadeiro com movimentos lentos mas decididos. Uma última lágrima correu sua face perdida no horizonte, e no instante seguinte ela baixou a vista, fechou os olhos e deu um passo à frente, mergulhando de pé, graciosa e esvoaçante, na névoa do seu próprio esquecimento…
Pasma, Lana curvou-se sob o peso de seu próprio grito de dor, que ecoou estridente pelo espaço novamente escuro e vazio enquanto o cruel Destino lhe arrancava dos pulmões, para todo o sempre, o ar que a fazia respirar. Não podia acreditar no que acabara de ver: tudo estava acabado, tudo! Sentiu-se caindo de súbito das nuvens da paradisíaca vida que vivera rumo a um inferno de amargura e arrependimento infinitos. Lembrou-se da sentença de Misha que, com precisão científica, garantiu-lhe de que não haveria mais ninguém no mundo como Lea. E agora ela se fora para sempre! Uma torrente de lembranças lhe veio à cabeça. Todos os maravilhosos momentos que passaram juntas, toda a vida de felicidade que teriam pela frente, tudo que se foi. Ela nunca mais teria alguém para amá-la novamente, teria de viver o resto de seus dias em um mundo sem amor, sem compaixão, carícias e cuidado… Prostrada ao chão, encheu novamente os pulmões para tornar a gritar. Isso não podia estar acontecendo, tinha de ser um pesadelo, mas não era…! A dor nunca lhe doeu tanto. Dor de ver tudo aquilo que fazia sua vida valer a pena desaparecer irremediavelmente em um passado morto e inanimado… De não poder fazer nada enquanto via a pessoa que tanto amava simplesmente deixar de existir, tornando-se uma mera lembrança, dolorosa memória de toda a felicidade que já teve e jamais voltaria a ter algum dia. Lea era única em todo o mundo, e ela a rejeitara, a levara a se matar! Somente quem algum dia teve tudo e, subitamente, perdeu esse tudo, sabia a dor que Lana sentia agora…
– Não… – sussurrou de joelhos, ofegante, entregue à insensível escuridão que a rodeava e a dominava vorazmente, como uma matilha de lobos famintos.
Ficou assim por um tempo, imóvel, quase sem forças, até erguer-se do solo como um boneco de pano inerte. As lágrimas lhe encharcavam aquela face paralisada pelo sofrimento, sua alma estava dilacerada incapaz de encontrar um rumo. Então percebeu que aquele era o momento ideal para uma canção. A música da história delas, dos dias que jamais tornaria a viver, da felicidade mais dolorida e despedaçada que alguém poderia sentir. Ergueu a face em direção ao escuro e murmurou:
– Nel, leia o que estou sentindo e o que estou pensando. Converta minhas lembranças em imagens do passado, traduza meu tormento em um ritmo lento, faça minha agonia virar melodia. Faça tudo isto, e grave o que vou cantar.


          ASSISTA AQUI O VÍDEO DE LANA:

Summertime Sadness - Lana del Rey

(Remember always love you – bye)

Kiss me hard before you go
Summertime sadness
I just wanted you to know
That, baby, you're the best

I got my red dress on tonight
Dancing in the dark in the pale moonlight
Done my hair up real big beauty queen style
High heels off, I'm feeling alive

Oh, my God, I feel it in the air
Telephone wires above are sizzling like a snare
Honey, I'm on fire, I feel it everywhere
Nothing scares me anymore

(One, two, three, four)

Kiss me hard before you go
Summertime sadness
I just wanted you to know
That, baby, you're the best

I got that summertime, summertime sadness
S-s-summertime, summertime sadness
Got that summertime, summertime sadness
Oh! Oh, oh, oh, oh…

I'm feelin' electric tonight
Cruising down the coast goin' 'bout 99
Got my bad baby by my heavenly side
I know if I go, I'll die happy tonight

Oh, my God, I feel it in the air
Telephone wires above are sizzling like a snare
Honey, I'm on fire, I feel it everywhere
Nothing scares me anymore

(One, two, three, four)

Kiss me hard before you go
Summertime sadness
I just wanted you to know
That, baby, you're the best

I got that summertime, summertime sadness
S-s-summertime, summertime sadness
Got that summertime, summertime sadness
Oh! Oh, oh, oh, oh…

Think I'll miss you forever
Like the stars miss the sun in the morning sky
Later's better than never
Even if you're gone I'm gonna drive (drive, drive)

I got that summertime, summertime sadness
S-s-summertime, summertime sadness
Got that summertime, summertime sadness
Oh! Oh, oh, oh, oh…

Kiss me hard before you go
Summertime sadness
I just wanted you to know
That, baby, you're the best

I got that summertime, summertime sadness
S-s-summertime, summertime sadness
Got that summertime, summertime sadness
Oh! Oh, oh, oh, oh…
Depressão de Verão – Lana del Rey

(Lembre, sempre vou te amar - tchau)

Beije-me com força antes de ir
Depressão de verão
Eu só queria que você soubesse
Que você era a melhor

Pus meu vestido esta noite
Dançando na escuridão sob um pálido luar
Arrumei meu cabelo, lindo, estilo rainha
Sem salto alto, me sinto viva

Oh, meu Deus, eu sinto no ar
Fios telefônicos acima, chiando como armadilha
Querida, estou ardente, eu sinto por toda parte
Nada mais me assusta

(Um, dois, três, quatro)

Beije-me com força antes de ir
Depressão de verão
Eu só queria que você soubesse
Que você era a melhor

Peguei aquela depressão, depressão de verão
Verão, depressão de verão
Peguei aquela depressão, depressão de verão
Oh! Oh, oh, oh, oh…

Me sinto elétrica esta noite
Seguindo pelo litoral a 99 por hora
Tirei meu pior, querida, do meu lado mais divino
Eu sei que se eu for, morrerei feliz esta noite

Oh, meu Deus, eu sinto no ar
Fios telefônicos acima, chiando como armadilha
Querida, estou ardente, eu sinto por toda parte
Nada mais me assusta

(Um, dois, três, quatro)

Beije-me com força antes de ir
Depressão de verão
Eu só queria que você soubesse
Que você era a melhor

Peguei aquela depressão, depressão de verão
Verão, depressão de verão
Peguei aquela depressão, depressão de verão
Oh! Oh, oh, oh, oh…

Acho que vou sentir sua falta pra sempre
Como as estrelas do sol no céu matutino
Tarde é melhor do que nunca
Mesmo que você vá eu vou dirigir (dirigir, dirigir)

Peguei aquela depressão, depressão de verão
Verão, depressão de verãoPeguei aquela depressão, depressão de verão
Oh! Oh, oh, oh, oh…

Beije-me com força antes de ir
Depressão de verão
Eu só queria que você soubesse
Que você era a melhor

Peguei aquela depressão, depressão de verão
Verão, depressão de verão
Peguei aquela depressão, depressão de verão
Oh! Oh, oh, oh, oh…



Pisando no acelerador, girando o volante, apertando a embreagem e engatando marchas, Lana disparava pelas estradas. Sentira uma louca necessidade de buscar os prazeres mais profanos, as emoções mais estapafúrdias, e a única ideia que lhe veio à mente foi de pegar o carro manual abandonado por Lea junto à ponte, o mesmo que, naqueles serenos momentos maravilhosos do passado, ela lhe ensinara a dirigir. Mas aqueles dias se foram, e só o que restava agora era um desejo desenfreado de intensidade, de buscar uma satisfação inalcançável, porque individualista e incompleta, como quem persegue em vão o colorido etéreo e distante do brilhoso arco-íris. E ela o perseguia perigosamente.
Entre uma curva e outra daquela rodovia junto ao litoral, por onde passava a noventa e nove por hora, cada vez com mais dificuldades em manter o controle do carro, Lana divagava. Às vezes amor não é suficiente, dizia para si, e a estrada se torna cada vez mais difícil. Difícil, e a cada curva, mais próxima do fim. Por isso que, enquanto se está na estrada, é preciso encontrar nela alguma diversão. Rir e não chorar, molhar-se sob a chuva e ter a quem amar, subir às mais apaixonantes alturas para lá se inebriar. “Permita-me ter isso, estrada, permita-me viver enquanto eu existir!” De repente freou com tudo numa curva em declive, quase tarde demais, cantando os pneus para por pouco não sair capotando na praia lá embaixo, escapando de um perigo iminente que fez seu peito esquentar de excitação. Era disso que ela precisava! Pois agora que Lea se foi, não havia outra maneira de se provar o gosto da vida. E ela precisava disso antes que seu tempo se acabasse! Pois nascemos para morrer, pensou enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. E por um instante, ao passar por outra curva ainda mais capciosa, quando quase perdeu de vez o controle do carro, concluiu que, se partisse agora, morreria feliz.
Mas a estrada não acabava, e tampouco a tortura. Não lhe saía da cabeça a lembrança de Lea, do vídeo que produziu com aquelas imagens borradas por imperfeições, como num antigo filme danificado pelo tempo ou uma memória turva e distante, ambas dolorosas recordações de um passado que se foi e jamais retornará. Podia ouvir os pássaros sob a brisa de verão, se esforçando para não meter-se em problemas, mas tinha uma guerra em sua mente. Apenas dirigia…



A estrada enfim terminou, exatamente onde ela queria que terminasse. Ficou ali parada, em pé junto à beira do precipício. Na expressão um olhar vazio, desprovido de sentimentos, enquanto à sua frente a descomunal altura da garganta parecia chamar-lhe. Ficou ali observando desconsolada à queda, cantarolando a última canção que gravara:
– Beije-me com força antes de ir… Depressão de Verão…
Ali perto, Zem corria como nunca em meio à antiga estrada de ladrilhos rodeada por ciprestes. Pernas não parem agora, dizia para si. Sabia exatamente o que se passava. Sabia que, por mais estarrecedor que tudo aquilo fosse, era real. O perigo era real!
– Só queria que você soubesse… – a garota seguia cantarolando para o aterrador abismo enquanto abria os braços como se quisesse envolvê-lo, abraçando um velho amigo em busca da definitiva consolação.
– Lana! – Zem gritou na direção do despenhadeiro, desesperado por não poder vê-la ou ouvi-la em meio às árvores.
Depois de cantarolar mais um pouco para o abismo Lana baixou a vista para o fundo escuro da garganta, lá onde a beleza verdejante se deixava dominar pelas trevas e onde as deslumbrantes águas das cachoeiras morriam em silêncio. Olhou por mais um momento, e então decidiu se mover. Deu um passo para trás, e a seguir virou as costas ao despenhadeiro e foi se afastando deste com passos lentos e displicentes. Foi então que percebeu um rosto familiar vindo correndo por entre as árvores, o rosto esbaforido e avermelhado de um apavorado Zem:
– Não faça isto – gritou ao alcançá-la, seus braços sacudindo ao sabor da sua estabanada correria.
– Isto o quê?
– Você sabe… – exclamou com voz ofegante – Jogar-se da garganta…
Incrédula, Lana olhou para trás, para o abismo interminável, e sua face corou. Era isto que pensavam dela? Que ela seria mesmo capaz de acabar com a própria vida?
– Eu, me jogar? – voltou-se envergonhada para Zem, incapaz de encará-lo nos olhos – Por que eu faria isto?con
– Lana, eu… Eu sei de tudo… Falei com sua mãe depois que vi… Seu último vídeo. Sei tudo sobre Lea… E queria te dizer que… Que eu sinto muito.
Envergonhada, ela sentiu seus olhos se enterrarem no chão. Não conseguia olhar nada além de seus próprios pés. Mas então um sentimento muito forte lhe veio à alma, uma convicção profunda que a fez erguer os olhos e encarar Zem face a face. Tudo que ela sempre quis foi desabafar sua dor, fazer o mundo entender o que sentia, nada mais. Só queria ser entendida! E para garantir que todos a compreendessem bem, mais uma vez decidiu falar:
– Não vejo razão para me matar. Sou jovem, tenho décadas e mais décadas de vida pela frente, e da mesma forma que Lea existiu, não é possível que não surja mais ninguém como eu no mundo. Nem que leve cem anos, eu vou reencontrar o amor. Vou voltar a ser feliz. Afinal, se falta de amor é doença preciso então de minha cura, e só vou achá-la se continuar viva.
E seguiu caminhando, deixando para trás um perplexo Zem. Este, porém, logo se refez para tornar a falar:
– Sabe, Lana… Percebi que alguém andou usando Nel, sem autorização, várias vezes nos últimos dias. Isso me faz lembrar que nunca ninguém encontrou pessoalmente essa tal Lea. Não acha estranho?
– A existência é estranha – Lana devolveu, sem olhar para trás. – Irônica, engraçada, luxuriosa, triste, assustadora, tão estranha quanto cada um desses sentimentos. Vida é arte, a arte de ter esperança.
– Lana – Zem insistiu, vindo logo atrás – Por acaso Lea existiu realmente? Quer dizer, qual afinal a sua doença, misantropia ou… Esquizofrenia?
– Faz diferença? – devolveu secamente, sem deixar que o que ficava para trás detivesse seus passos – Doença é preconceito, loucura é juízo de valor, covardia é a coragem que ainda não encontrou o que lhe dê forças, e o amor…   concluiu num murmúrio macio, suave como o beijo perdido  O amor é efêmero. Nada disso existe mais. Só o que conta é a vida.
E seguiu sozinha sua senda, com passos delicados de quem parecia tatear com os pés os percalços de seu incerto futuro. Andava em meio à penumbra de uma realidade que parecia turva, como se ainda estivesse perdida no passado e seu futuro fosse apenas parte dele. Podia jurar ouvir a melodia final de sua canção, morrendo ao fundo, como a completar aquele final dramático. Sonho ou pesadelo? Tampouco fazia diferença. Sabia que importante mesmo era seguir em frente, com a consciência de que avançar, e não parar no caminho, era a única maneira de deixar para trás todos os seus passados e, assim, construir seu futuro.